O deboche de Di Cavalcanti no jantar pré-Semana de 22. "Tô lascado e só participo se fulano comprar um quadro".
Conforme prometido pra hoje, o texto sobre a farsa da Semana de 22 envolvendo a participação de Di como cabeça. E porque galeristas estão chateados com sua nova biografia.
Di Cavalcanti, morto de lascado e frequentando a turminha da grana, não conseguia evitar o desconforto com a postura elitista dos organizadores da Semana. E a solução que Di encontrou foi meter o sincero deboche. A cena foi relatada pelo próprio - e aqui recriada por mim.
Numa mesa de jantar elegante no Automóvel Clube, Di comeu, bebeu e soltou:
- Não participarei mais dos arranjos do evento porque não tenho um puto para me manter em São Paulo.
Os demais baixaram os olhos, constrangidos, chocados, MEU DEUS. O silêncio.
- Não é vergonha ser pobre e ser boêmio, digam a Paulo Prado que me falta dinheiro para pagar o hotel, e que ele compre uns desenhos meus, um quadro, o que ele quiser, para me sustentar aqui em São Paulo, por um mês.
Mário e Oswald acharam o FIM DO MUNDO levar esse assunto num jantar chique. Mas Paulo Prado se colocou à disposição e comprou todo o restante da coleção dos Fantoches. É compreensível que Di, naquela situação, com suas condições atendidas, desistisse de enfrentar o magnata.
Assim, Di seguiu de braços dados com os modernos de São Paulo para organizar um evento apoiado pela mentalidade industrial e pela aristocracia rural paulistana. Lutava, de fato, contra uma arte ultrapassada, mas seu real interesse era fazer uns bons contatos. Procurava também sua própria afirmação social. Ele colocou suas condições e foram aceitas. Fim. Quando se trata de grana, qualquer pessoa sensata deixa seu orgulho pra lá.
A expectativa de Di era que suas novas relações na alta sociedade, e a publicidade gerada pelo evento, despertassem um maior interesse por sua obra, pois a elite de São Paulo estava disposta a comprar quadros modernos. Di queria vender. Acho correto.
Mas não foi como ele esperava.
No período que o Theatro Municipal recebeu o evento - descrito nos livros de história como a REVOLUCIONÁRIA Semana de 22 - Di apresentou doze obras. Uma delas foi o óleo “Figura” que muitos classificaram como sombrio.
A exposição não despertou interesse na imprensa. Aliás, Anita Malfatti encontrou bilhetes anônimos atacando seus trabalhos. E a bilheteria foi menor que a de uma sessão do filme sobre o Mamonas Assassinas.
No segundo dia veio uma vaia. Mas não foi uma vaia espontânea. Os futuristas italianos já usavam o “falem mal, mas falem de mim”. Aquelas vaias foram encomendadas. Oswald, segundo relato de Di, já encomendara vaias na sua formatura de Direito. “Não se assuste. Encomendei umas vaias pra mim. Seria ridículo se eu fosse aplaudido”. E vaias tendem a puxar outras. O tal efeito manada.
Trecho da biografia de Di Cavalcanti escrita por Marcelo Bortoloti
“Seria melancólico se Di não reconhecesse o valor da Semana de Arte Moderna, preferindo apenas espezinhá-la, tarefa a que se dedicou, por exemplo, Yan de Almeida Prado nos últimos anos de vida. Não foi esse, entretanto, o caminho que ele escolheu. Ainda que desprezasse o aspecto frívolo e elitista que o evento tomou, e apontasse sempre a fragilidade da proposta de modernidade baseada apenas na renovação estética, não lhe escondia os méritos, e chegou mesmo a aumentá-los quando era conveniente para seu currículo. Sabia que a festa paulistana, produzida com o estardalhaço das revoluções políticas, havia se tornado uma referência para o Brasil, espécie de rito de passagem. Nesse ponto, a feição mundana do evento, e seu envolvimento com a elite mais endinheirada do país, haviam ajudado a reverberá-lo e a lançar moda - à la Deauville — no meio artístico brasileiro.
Ainda que as ideias modernas já rodassem pelo país, num atraso de décadas em relação à Europa, o movimento paulista capitalizou-as, numa festa que não tinha nada de marginal ou underground, colocando-se oficialmente à frente dos demais. Daí seu caráter imodesto, porque, como observou Lima Barreto, ‘o modesto paira na sombra e ninguém o nota’. Segundo Di, ao estabelecer um marco, questionando as estruturas artísticas do país pelo lado principalmente formal, eles abriram espaço para um novo tipo de conteúdo, esse sim inovador para a arte, com atenção maior ao tipo brasileiro, o que ficaria mais claro depois, no movimento Pau-Brasil ou nos romances nordestinos da década de 1930”.
Sobre essa ideia, Di resumia que “foi um movimento burguês, com faíscas de importância que só se transformaram em fogo ao atingirem os estados do Nordeste".
O ímpeto de demolição, resultado de um contexto histórico especifico, uniu cabeças muito heterogêneas na festa paulistana, e quando chegou o momento seguinte, o da construção da arte nova, cada uma tomou seu rumo próprio. Mas o evento já estava posto como um marco histórico, e suas virtudes foram acrescentadas depois.
Acabada a Semana, os resultados para Di foram medíocres. Ele foi contratado para decorar os salões da Sociedade Hípica Paulista para um baile de Carnaval que ocorreu no sábado, um dia após o encerramento do evento artístico. Depois disso, sem trabalho, ele regressaria ao Rio de Janeiro. Não participaria, portanto, da chamada "fase dos salões", quando os jovens boêmios, irremediavelmente ligados à alta sociedade paulistana, passaram a frequentar com assiduidade a residência de Paulo Prado e de outros magnatas, num ímpeto de atualização artística e elevação social.
Segundo Di, o Carnaval da Hípica lhe despertou um desejo de fuga. Enfastiado das aglomerações e de debates nem sempre oportunos, buscava o silêncio de um ateliê. A pintura, dizia então, é uma arte que exige isolamento e serenidade, e para aprofundar-se nela faz-se necessário eliminar a parte festiva da vida. Naquele momento, havia perdido o prazer da convivência, em paralelo à falta de recompensa financeira que todo o esforço com a Semana lhe proporcionou.
Quando pesquisadores batizaram de "fase heroica" do modernismo o momento que envolveu a organização da Semana, pareciam sugerir a existência de jovens mártires por detrás do evento. Ideia hoje difícil de sustentar, ainda que Menotti del Picchia tenha se aplicado para tanto. Tarsila do Amaral, por exemplo, nome muito vinculado à Semana, sequer estava no Brasil.
Por que galeristas e o mercado da arte, em geral, não gostaram da biografia?
Ora, a resposta é simples. O “era uma vez um rapaz pobre que liderou um evento etc” foi um dos fatores usados, e ainda é, para valorizar estes artistas. Para os artistas, o evento nunca serviu pra nada. Mas o mercado de arte prefere o lirismo que a cautela. Di possuía uma ENORME consciência do papel social que cabe ao artista, algo que não coube a muitos nomes ligados ao modernismo. Di bebia muito. Di foi a Paris como correspondente. Ele não foi como os artistas que já estavam por lá.
Nos livros de arte, é comum encontrarmos que Di, em Paris, entrou em contato com artistas como Picasso e Matisse. Com Picasso, Di deu algumas voltas apresentando-se não como pintor, mas como repórter. E de Picasso ouviu comentários debochados sobre a turma brasileira que circulava na França.
Um galerista não gostou da biografia porque há um capítulo sobre o envolvimento de Di com travestis. “Aquilo é mentira”, afirmou o galerista pra mim. Biografias são baseadas em pesquisas, documentos, entrevistas, relatos, não em achismos. Aquele comentário revelou-se pra mim como um alerta preconceituoso.
Como é falso e hipócrita o mundo criado pelos que vendem arte. Não estou descobrindo a roda. Estou apenas jogando luz para muitos de nós, assim como eu, que gostam de arte e não tem contato com seus bastidores. Outras coisas serão ditas no momento oportuno.