Quando morri de sede no acampamento golpista no dia 15 de novembro de 2022, proclamação da república. Mas Jesus chorou e voltei
Bolsonaro denunciado me trouxe recordações sobre o dia que morri pedindo água para cristãos em frente ao Comando Militar do Sudeste. “Coloca aí que às 15h do dia 15, rezaremos 15 minutos".
Papuda é um nome sonoro. Gostoso de falar. Os memes pós-denúncia da PGR sacudiram minha memória e, de repente, parei na semana do 15 de novembro de 2022. Dia que morri. Dia da proclamação da república quando fui até o Comando Militar do Sudeste visitar o acampamento de golpistas que pediam intervenção federal.
No máximo, dois mil manifestantes pró-golpe cantavam “Você sabe de onde eu venho?” nos arredores do Parque Ibiraquera naquela manhã escaldante. Foi quando conheci Marcelo.
- Umas duas mil pessoas, aproximadamente?!
- Nunca! No mínimo 200 mil
Diante da reação não verbalizada que basicamente dizia “porra, mano, de onde tu tirou essa", ele lançou a impactante informação abaixo.
“Coloca aí que às 15h do dia 15, 2 milhões estarão fazendo um cordão de oração em torno do quartel por 15 minutos.”
Depois de puxar a camiseta para cobrir a barriga, Marcelo perguntou meu nome.
- É Castelo com um ou dois LL's?
- Igual o Castelo do meu avô. Dois LL.
- Neta do Marechal?
Fingi demência. Não sei mais sobre Marcelo, mas temo que esteja preso.
Depois conheci Leonardo, um vendedor de bandeiras do Brasil. Disse que em dias como aquele conseguia fazer R$30 mil reais. No dia 2 de novembro disse que faturou R$25 mil. Anderson, seu concorrente, lançou:
- Ele chutou alto. Num dia como hoje, o lucro é de 10 mil.
De R$30 mil para R$10 é uma diferença grande, mas deixei quieto. E segui. Calor do cão, 31 graus. A lembrança que tenho do corredor que levava à entrada do quartel é de sufocamento. Nas laterais, vans de lanches e espetos misturavam-se a barracas, um quiosque de achados e perdidos, bandeiras, sombrinhas e uma imagem impressa de Jesus Cristo.
O público gritando: “For-ças Ar-Ma-Das S.O.S”.
Uma senhora segurava um papel A4. De um lado, a capa da ‘Constituição - República Federativa do Brasil 1988’. Um senhor desesperado pedia socorro a Duque de Caxias. Nos pés, tênis Adidas, Nike ou Puma. Rezei. Estava desidratando. Os cristãos com certeza me dariam água. Tinha muita garrafa de água e refrigerante num quiosque.
Negaram. Não lembro a justificativa que deram. Daí apelei para um homem vestido de bombeiro. Fingiu que não escutou. Procurei o nome na farda - caso desmaiasse, saberia quem culpar. Fugiu. Era um falso bombeiro.
Vi roupinha de cachorro verde e amarela. Vi plantas-imãs de geladeira.Vi adesivos de Nossa Senhora, uma caveira, uma propaganda de um canal de Youtube e uma faixa:
“Lutar sempre, vencer talvez. Desistir jamais”.
A sede venceu
E no meu delírio vi o Alexandre da novela A Viagem me chamando para o inferno. Vi o Marco Polo Del Nero voltando pra CBF. O Péricles cantando “melhor eu ir”. Vi Jesus chorando sangue.
A cara de pau sempre foi algo que me deu muito orgulho. Quando era repórter de rua, ai que saudade, partia para a humilhação. A Juliana, amiga e excelente repórter, chama de “técnica Cacau”. Porra, achei do caralho quando ela me contou. Sou uma decadente, mas tenho uma técnica. Posso morrer em paz. Pensei nisso, sabe. Que tinha uma técnica chamada humilhação. Adeus, Terra.
Vi esparadrapos, soro fisiológico. “Que você quer?”, perguntou a responsável, fechando a cara e afirmando alguma loucura sobre a origem das doações, algo sobre CPF.
- Fica até às 15h que você vai ver dois milhões - disse uma mulher loira. Lembro do seu cinto com um H imenso.
Uma senhora simpática quis me acolher.
- Nós não somos hostis. É que infelizmente tem pessoas que não entendem que as pessoas trabalham em lugares que nem sempre são aquilo que as representam.
Lembro que tocou A Canção do Expedicionário.
“Não permita Deus que eu morra. Sem que volte para lá/ Sem que leve por divisa/ Esse "V" que simboliza a vitória que virá/ Nossa vitória final, que é a mira do meu fuzil”. O “V” é bastante frequente na letra : "V" da "vitória", "volte", "leve", "divisa”.
Lembro que balbuciei “porra vagabundo vou te falar…” e o Andre apareceu com um refrigerante. “Tô chapando”. Mais dois goles e ..
“Eita mundo bom de acabar”
Voltei. Depois que o André salvou minha vida, vi três homens vestidos como militares. Foram logo cercados para selfies. Perguntei se algum deles esteve no Vietnã.
- Não, mas estive na missão no Haiti.
Daí que começaram a organização de uma marcha e questionei sobre protocolos estabelecidos para ocasiões solenes. A resposta foi fenomenal. Misturaram terminologia militar, 1962, Supremacia Bourne. Um deles carregava um broche da Swat. Ao lado, uma jovem performava com a bandeira do Brasil ao som musicado de “Pai Nosso que estais no céu…”
Lembro da Companhia de Tráfego em torno do meio-dia, quando carros começaram a estacionar no gramado onde está O Monumento às Bandeiras, obra de Victor Brecheret. Golpistas aproveitaram para fazer seus vídeos e fotos.
A ironia é que esses golpistas quebrariam, no 8 de janeiro de 2023, uma escultura do artista - parte do nosso patrimônio cultural.
Se pudesse, eternizaria o 15 de novembro de 2022 num quadro.
Hoje encontrei no meu computador um PDF horroroso publicado pela comunicação do exército na ocasião. No topo, uma imagem recortada da tela A Proclamação da República (1893). Se não fosse decadente e tivesse habilidades com artes plásticas, faria tanta coisa.
Pintado por Benedito Calixto, aquele sim era um quadro maravilhoso Os cavalos magros, coitados. Uma tristeza tão realista. E apenas os militares têm rostos. Os rostos dos civis aparecem nas janelas, mas podem ser fantasmas. Tá todo mundo cansado no quadro. Todo mundo bestializado.

Cenas históricas costumam ser exageradas com elementos heróicos e não há problema nisso. Nessa escola, está o quadro Independência Ou Morte, de Pedro Américo de Figueiredo e Mello. Eu amo os looks. Amo os olhares. Viajo criando situações do tipo “x paquerando y, adrenalina por cima, beijaram na boca ali mesmo atrás do carrinho de madeira”.
O 15 de novembro que desconhecem
Não vou meter que cada um tem sua verdade. São fatos. E o fato é que a Proclamação da República não foi algo popular. Foi meio natural e com uma fofoca ótima também. Tava todo mundo de filme queimado. As Forças Armadas, após a Guerra do Paraguai, totalmente HUMILHADA. Os salários dos soldados super baixos. Os civis de boa fazendo quadradinho de oito na frente dos militares. Desse nível.
A genialidade da tela de Calixto em “A Proclamação da República” está nos personagens sem glamour. Parece pátio de escola mal assombrada. Eu amo! Ele com certeza aquela exagerada pra deixar o negócio lúgubre.
Agora a melhor parte
O marechal Deodoro da Fonseca não queria derrubar Dom Pedro II, mas o major Frederico Sólon INVENTOU que existia uma ordem de prisão para ele. Daí o Deodoro acreditou na fanfic e meteu logo o Viva a República. Foi meio que isso. Daí tornou-se presidente.
Mas fatos viram versões romantizadas
Voltando ao PDF de novembro de 2022. destaco o seguinte texto:
“Na manhã de 15 de novembro de 1889, Deodoro, então presidente do Clube Militar, colocou-se à frente das tropas da guarnição do Rio de Janeiro e depôs o Gabinete Ouro Preto sem o uso da força. O Brasil acordou monarquista e foi dormir republicano. Jamais houve na história do País uma ruptura política tão inesperada”.
Morro com a parte estrogonoficamente laudatória:
Ao comemorarmos a Proclamação da República, exaltamos o papel do Exército Brasileiro, componente essencial do futuro esplendoroso da nossa Nação, que soube interpretar os anseios do povo ao qual serve.
E o clássico…
Deus abençoe a República, o Exército Brasileiro e o nosso amado Brasil! Salve o 15 de novembro! Viva a República do Brasil! Brasília-DF, 15 de novembro de 2022.


Agora quero falar das cadeiras arrancadas…
É de boa mandar dois textos no mesmo ou isso pode incentivar cancelamento da minha news? Espero a resposta para decidir se publico hoje ou amanhã. Se a resposta não vier, considerarei o risco.
Apoie uma coitada
Estrogonoficamente, que expressão singela! Vou achar um jeito de usar também.
Agora eu preciso de uma ocasião para usar a expressão "estrogonoficamente laudatória"!